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El Camino: A Breaking Bad Film | Crítica

Uma notável consequência da atual enxurrada de continuações, prequels, reboots, remakes e derivados é o desengano do público. Cada anúncio de um novo título dessa natureza é recebido com mais ceticismo do que expectativa — afinal, já estamos escaldados. Além do sem-número de projetos ordinários, cujo único propósito é capitalizar em cima de um fandom ou da nostalgia em torno de uma propriedade intelectual, há muitos casos em que nem o envolvimento de profissionais talentosos ou dos realizadores originais consegue agregar substância. Infelizmente, as boas surpresas têm se tornado raridade.

Vince Gilligan é, portanto, ponto fora da curva. Ex-roteirista de Arquivo X, ele criou, produziu e escreveu, ao lado de um time competente, uma das melhores séries de todos os tempos. Breaking Bad (2008-2013) entregou drama televisivo muito acima da média, consistente ao longo das cinco temporadas, com picos de puro brilhantismo — episódios como One Minute (S03E07), Face Off (S04E13) e Ozymandias (S05E14) são antológicos — e um final emocionalmente gratificante e plenamente satisfatório do ponto de vista narrativo.

Talvez o spin-off Better Call Saul, que estreou em 2015 e está prestes a entrar em sua quinta temporada, não prenda a atenção de imediato, mas certamente consegue conquistar aos poucos, a exemplo de seu protagonista, o advogado Jimmy McGill (Bob Odenkirk), em sua jornada antes de se tornar o charlatão Saul Goodman. Em vez de se refestelar no terreno seguro estabelecido pela série original, o derivado tem voz própria, aprofundando as personalidades e relações de rostos familiares, como Gus Fring (Giancarlo Esposito) e Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks), e apresentando novos e interessantes personagens, principalmente Chuck McGill (Michael McKean) e Kim Wexler (Rhea Seehorn).

O êxito de BCS ajuda a derrubar qualquer reserva com relação a El Camino: A Breaking Bad Film. Sim, o longa-metragem é direcionado à audiência cativa da série, e sua premissa de revelar o destino de Jesse Pinkman (Aaron Paul) após o último episódio pode soar como fanservice. O próprio Gilligan é o primeiro a reconhecer que não se trata de um filme autônomo ou mesmo uma continuação, definindo-o como “coda” de Breaking Bad — o termo musical se refere a uma série de compassos adicionais que arrematam um trecho ou a composição como um todo. Todavia, com exceção de um ou outro easter egg (casos da memorabília de Star Trek em uma estante e do macacão da dedetizadora Vamonos Pest no chão de um apartamento), nada é gratuito.

A maior parte das referências diretas tem razão de ser. Por exemplo, a cena em que Jesse deixa um besouro andar nas costas da mão remete a outra muito parecida em Peekaboo (S02E06) — mais do que representar um mero afago aos fãs com boa memória, a sequência explora justamente esse conhecimento prévio para criar suspense, uma vez que, a exemplo do que ocorre naquele episódio, ela antecipa um confronto inevitável e a necessidade de escolha entre um desfecho diplomático ou violento.

O mesmo vale para os flashbacks. Alguns têm como bônus o fato de causar empolgação ao trazer de volta velhos conhecidos, porém, todos cumprem funções narrativas específicas, seja introduzindo organicamente uma informação crucial para o desenrolar da trama, seja ilustrando o estado de espírito do protagonista em determinadas situações e, assim, justificando suas ações. Por sinal, é preciso reconhecer o trabalho de Aaron Paul, que passeia com desenvoltura pelas diversas fases de Pinkman.

Eis aí o maior mérito de Gilligan, que assina o roteiro e a direção do longa: a capacidade de conceber personagens complexos. Ao longo da série, Jesse serviu como contraponto a Walter White (Bryan Cranston), com um arco que, em muitos aspectos, é oposto ao do professor de química, algo que El Camino aprofunda. Aqui, ele é retratado em uma versão mais madura e experiente, devido a tudo que viveu — mas, vez ou outra, ainda deixa escapar o lado tolo metido a sabichão que o caracterizava no início de Breaking Bad.

O filme também acerta ao trabalhar a tridimensionalidade de alguns coadjuvantes, às vezes mostrando uma faceta surpreendente, como ocorre com Skinny Pete (Charles Baker) — e mesmo aí, o faz de um jeito coerente e convincente. Em outros casos, o script acrescenta novas camadas ao acentuar alguns traços de personalidade. Todd (Jesse Plemons), por exemplo, surge ainda mais perturbado, graças a um conjunto de detalhes, incluindo sua bizarra coleção de globos de neve artesanais, com um exemplar particularmente revelador.

Um dos recursos mais discutidos e analisados na construção do show, o uso das cores para representar temas e sentimentos em momentos-chave na trajetória dos personagens é retomado em El Camino. Mais notadamente, se faz presente na pintura do carro que Jesse utiliza em sua fuga — preto (simbolizando morte e escuridão) com listras vermelhas (sangue e violência) — e que ele logo é obrigado a abandonar. Similarmente, no primeiro banho que consegue tomar após meses de cativeiro, um fluxo de água preta de sujeira escorre pelo ralo; no entanto, logo em seguida, o protagonista decide vestir roupas escuras, sugerindo que há comportamentos difíceis de deixar para trás. Afinal, recomeçar não é o mesmo que acertar as coisas, e isso ele nunca vai conseguir fazer, como lhe diz Mike, em um flashback. Todas essas questões voltam à pauta no final.

É possível enxergar simetria na conclusão do longa e no fechamento do arco de Pinkman na série — ambas as cenas informam algo muito semelhante. Entre os dois momentos, porém, existe um abismo preenchido por uma história cativante que o personagem merecia e que Vince Gilligan sabe contar como poucos. Se for fanservice, então é muito bem prestado.


Fonte: Jovem Nerd