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Coisa Mais Linda – 1ª Temporada | Crítica

Com fotografia saturada, adoração a Bossa Nova e uma ambientação romantizada da cidade do Rio de Janeiro, Coisa Mais Linda — a nova série original da Netflix no Brasil — até tenta criar um retrato de uma brasilidade nostálgica do nosso cenário musical, mas acaba produzindo uma obra que parece ser feita para gringo ver. Se o nome da produtora americana Heather Roth nos créditos iniciais já não desse indícios suficientes dessa guinada internacional, a abertura com “Garota de Ipanema” cantada em inglês confirma esse aceno para um publico mais amplo.

A ideia de internacionalizar é algo típico de séries da Netflix, plataforma onde a também brasileira 3% teve um público majoritário de estrangeiros. Mas se era difícil apontar essas características em outras séries nacionaiscomo  Samantha! e O Mecanismo, a mais nova empreitada brasileira em streaming deixa isso claro ao implantar uma narrativa que só é verdadeiramente brasileira até a segunda página. A internacionalização não é mera formalidade, já que por vezes isso distância o espectador com retratos limitados de cenários específicos — como o grande depósito de bebidas que em tela é restrito a uma mesa e pouca caixas e não passa a ideia de um grande negócio ilegal. Pode parecer uma forma simplista de se definir, mas os sets da série, por vezes, só se parecem com sets de um programa de TV e não um local real e palpável do Rio de Janeiro cinquentista.

Coisa Mais Linda conta a história da jovem paulistana Maria Luiza (Maria Casadevall), que vive uma vida cheia de bonanças, mas sofre quando é abandonada por seu marido, que foge com uma amante e a deixa inundada em dívidas no meio do Rio de Janeiro.  Encantada pela capital fluminense, ela faz o possível e o impossível para abrir um clube de música ao vivo que toca Bossa Nova todas as noites. Lígia (Fernanda Vasconcellos), a melhor amiga de Maria Luiza, vive uma realidade parecida: tem uma vida aparentemente perfeita (ainda que apanhe do marido), é casada, rica e linda. Seu sonho sempre foi cantar em público, mas seu cônjuge não aceita uma esposa que trabalhe — costume que era comum até os anos 80. Theresa (Mel Lisboa) é a mais desconstruída do grupo: vive um relacionamento de sinceridades aparentes, tem um trabalho como editora e acabou de voltar de Paris, onde aprendeu muito sobre a revolução feminista na Europa. Fechando o quarteto principal, Adélia (Pathy DeJesus) é a que vive na realidade mais distante: é uma mulher negra, que mora no morro em uma casinha simples e trabalha como emprega doméstica para sustentar a filha. Cada uma das quatro protagonistas da série sai da linha esperada para mulheres “comportadas” da época e trilham um caminho transgressões durante os sete episódios. O mais cativante é ver como cada uma dessas personagens se esforça para se descolar de suas realidades, cada uma no seu tempo e da sua maneira.

As realidades muito diferentes e a tentativa de uni-las pelas dores femininas cria um ambiente de sororidade interessante e a história que a série tem para contar é envolvente, reflexiva e até intrigante. Apesar de não serem as temáticas principais, o roteiro brilha mesmo ao trazer cenas interessantes que apontam para um racismo institucionalizado da sociedade, a forma como a imposição de masculinidades desestabiliza pessoas e a posição da mulher no ambiente corporativo. Todas essas discussões ganham força ao escancarar feridas que mostram a pouca evolução que tivemos nessas linhas nos últimos 50 anos.

Infelizmente, não há muita harmonia ou coesão na construção do roteiro, nem na atuação das quatro atrizes principais. Enquanto os núcleos de Theresa e Lígia são os mais bem escritos e desenvolvidos com parcimônia, a história principal de Maria Luiza chega a ser tediosa. O mistério acerca do paradeiro do seu ex-marido não engata, mas também não é ignorado ao ponto de ser fato superado da trajetória narrativa da protagonista. Não há uma dimensionalidade na construção da personagem, que vive cruzando a linha entre a convicção total no que está fazendo e a desistência completa — sem haver um meio campo; tudo parece abrupto e imediatista. A atuação também não ajuda: Casadevall é a atriz que menos se destaca, enquanto DeJesus é a que tem mais momentos chocantes e fortes.

Sororidade, repressão e feminismo em Coisa Mais Linda

Há alguns anos, o escritor vencedor do Nobel de Literatura V.S. Naipaul causou polêmica ao dizer que a escrita feminina teria uma visão restrita e sentimental. Segundo ele, era fácil identificar em um ou dois parágrafos se um texto tinha sido escrito por um homem ou uma mulher. Um teste proposto pelo jornal inglês The Guardian, entretanto, provou o exato contrário do que Naipaul pregava. Então, se é impossível distinguir a qualidade de uma escrita masculina e feminina, porque há tantos homens em posições de liderança e em cargos que até deveriam se exercidos por moças (como escrever para uma revista feminina)? É esse questionamento que o núcleo mais interessante de Coisa Mais Linda tenta propor. Encabeçado pela jornalista prafrentex Theresa (Lisboa), a personagem bate de frente com os donos de uma revista para contratar mais garotas para a redação. A revista Ângela, para qual Theresa trabalha, só tem uma mulher na equipe e todos os homens assinam com nomes femininos pois, segundo os editores, é “fácil escrever da mesma maneira delas”.

Ao mesmo tempo, outros núcleos da série também mostram dificuldades que mulheres tem simplesmente por terem nascido assim. Malu não consegue um empréstimo no banco, Lígia não pode ter emprego pois seu marido não aceita ter uma esposa que trabalha e a situação se agrava ainda mais com Adélia, que por ser negra acaba sendo sempre vista como serviçal — até mesmo por suas companheiras. Todas essas questões são bem colocadas e contrastam com os problemas relacionados a gênero que temos até hoje. Os temas ao redor das personagens são interessantes, porém a construção tem muitos momentos de pobreza. O roteiro não se dispõe a discutir nada mais a fundo ou mostrar contrapontos nas ideias. Em certos momentos, o discurso passa a ser mais importante do que a Arte e o roteiro em si — fazendo com que personagens e situações se tornem caricaturais; sem sutileza alguma.

Os roteiros escritos por uma equipe de quatro pessoas balançam e as vezes até saem dos eixos pela falta de coesão, mas a parte mais problemática de Coisa Mais Linda está na forma como a série é editada. A multiplicidade de narrativas e núcleos torna a edição confusa e com uma passagem de tempo incoerente: nos episódios finais, tudo parece corrido demais — apressando alguns dramas para construir ganchos que prendem o espectador para uma possível próxima temporada.

Vários momentos da edição carregam com si resquícios novelescos da forma como narrativas são construídas. Um dos mais irritantes é a pontuação dos diversos núcleos com vinhetas musicais que são tocadas para marcar cenas em lugares distintos. Em uma cena no morro, uma vírgula sonora de samba é tocada; enquanto o núcleo paulista da série ganha uma vinheta mais soturna e os boêmios do Rio são embalados pela Bossa Nova. O excesso de diálogos expositivos é outro vício vindo da forma tupiniquim de se fazer novelas — relembrando fatos que aconteceram episódios atrás ou explicitando (na forma de palavras) eventos que foram mostrados imageticamente. Fato é que essas voltas dadas para explicar obviedades criam pequenas fadigas em um roteiro que tem seu brilho e traz novidades importantes para o panorama de seriados brasileiros.

A parte técnica e visual de Coisa Mais Linda beira o impecável. A fotografia com cores quentes acalenta o coração e ambienta o Rio de Janeiro do seriado com um aspecto nostálgico. Já as cenas situadas no bar contam com uma iluminação rica em constastes, que dão bastante destaque para as apresentações musicais e deixam as reações da plateia com um aspecto soturno.

Apesar dos percalços e das dificuldades no roteiro, Coisa Mais Linda é o maior trunfo das séries originais brasileiras da Netflix até o momento. A produção é a mais complexa do selo e usa o conhecimento de programas estrangeiros, como A Maravilhosa Sra. Maisel e Mad Men, para criar uma série de época brasileira que é a mais envolvente e plural da Netflix brasileira. Uma pena é que a nossa cultura não seja primeiro plano aqui, já os próprios dilemas das personagens e as ambientações são tratadas de uma maneira estéril, que parece ser feita para gringo ver.


Fonte: Jovem Nerd