“O Rei da Comédia é minha reconciliação com a decepção, decepção com o fato de que a realidade é diferente do sonho”, afirma Martin Scorsese em um trecho do livro Conversas com Scorsese, do jornalista e crítico Richard Schickel. A fala permite duas interpretações: a primeira, literal, no contexto da carreira do cineasta nova-iorquino, que confessa ter chegado a Hollywood cheio de inocente ilusão; a segunda, como possibilidade de leitura do longa-metragem de 1982, que retrata o aspirante a humorista Rupert Pupkin (Robert De Niro), obcecado com a fama, vivendo em um mundo de devaneios e imaginando ser amigo do ídolo, o apresentador de televisão Jerry Langford (Jerry Lewis). Esse segundo entendimento é reforçado pelo fato de o filme não oferecer pistas visuais separando as fantasias de Rupert da realidade, o que se mostra bastante eficaz, em especial no final sarcástico.
Desde que foi anunciado, Coringa despertou comparações com O Rei da Comédia, em virtude do envolvimento de Scorsese nos estágios iniciais, atuando como produtor (posto que deixou para se dedicar a O Irlandês), da presença de De Niro, interpretando o anfitrião de um talk show, e, principalmente, da premissa. De fato, o roteiro assinado por Scott Silver, em parceria com o diretor Todd Phillips, bebe mais na fonte do longa dos anos 1980 — e de outros datados de uma era próxima, como Um Dia de Cão (1975) e Taxi Driver (1976) — do que no universo dos quadrinhos.
Uma das poucas referências diretas às HQs, por sinal, é a ideia do humorista fracassado como origem do vilão, pinçada de Batman – A Piada Mortal, de Alan Moore e Brian Bolland. Na trama, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) passa os dias preparando seu número de comédia stand-up, fazendo bicos como palhaço e cuidando da mãe doente (Frances Conroy), ao mesmo tempo em que enfrenta transtornos mentais que o fazem ser visto como aberração pela maioria à sua volta.
Com tamanho foco no personagem principal, é um alento constatar que a escolha de Phoenix foi um enorme acerto. Do primeiro ao último fotograma, ele domina a tela, conferindo peso até aos momentos menos inspirados do texto. Além de toda evidente dramaticidade que entrega, o ator exibe sutilezas que enriquecem ainda mais sua performance, como as diferentes risadas — a fingida, a reativa, a desesperada e, digamos, a última — e o detalhado trabalho de expressão corporal. É comovente, por exemplo, o instante em que o protagonista, já em um caminho sem volta rumo à escuridão, deixa escapar uma dança ao ver uma cena de Charlie Chaplin (não à toa, já que se trata de um dos mais emblemáticos clowns do cinema) em Tempos Modernos (1936), durante o evento beneficente.
Embora nenhum deles tenha uma participação extensa a ponto de se destacar, os coadjuvantes realizam um trabalho competente. Zazie Beetz é um sopro de frescor na pele de Sophie, interesse romântico de Arthur, enquanto Glenn Fleshler traz a repulsividade necessária a Randall, colega de trabalho do palhaço. Já Robert De Niro empresta algum cinismo ao astro da tevê Murray Franklin, o que o aproxima mais do apresentador vivido por Jerry Lewis do que de seu próprio personagem em O Rei da Comédia.
Aliás, voltando às comparações com o filme de Scorsese, o script faz uma relevante atualização. Se lá os atos criminosos resultavam da obsessão com o mundo das celebridades e da exposição na mídia, aqui a própria violência é que se torna o espetáculo, com as ações de Arthur servindo como a fagulha que faltava em uma sociedade à beira do colapso social — algo com enorme ressonância nos dias atuais, cheios de polarização e intolerância.
Quanto à direção, Todd Phillips repete a melhor estratégia da película de 1982: embaralhar as fronteiras entre real e imaginário, filmando os delírios do protagonista sem diferenciá-los dos demais acontecimentos. Todavia, o cineasta acaba insultando a inteligência do espectador em um momento-chave, ao incluir um desnecessário e anticlimático flashback explicativo logo após uma reviravolta no enredo ser revelada com absoluta clareza. Escorregão à parte, o saldo é positivo e tem alguns excelentes achados — caso da ideia de explorar o corpo magérrimo e contorcido de Phoenix como reflexo da psique atormentada do personagem e do uso da câmera intrusiva na sequência na cozinha, rompendo oportunamente com o distanciamento adotado até então.
O maior mérito de Phillips, no entanto, está relacionado ao sentimento de desilusão com Hollywood que muitos profissionais provavelmente experimentam. Em um momento em que a indústria tem priorizado fórmulas consagradas e apostas certeiras, em detrimento de trabalhos mais autorais e introspectivos (e, consequentemente, mais arriscados do ponto de vista do retorno financeiro), o cineasta encontrou uma maneira engenhosa de driblar o sistema: disfarçar seu projeto pessoal como filme de história em quadrinhos.
Sim, o longa ostenta o selo da DC e faz menções à mitologia do Cavaleiro das Trevas, mas isso é praticamente incidental. A Gotham imunda e com altos índices de criminalidade nada mais é do que uma representação da Nova York decadente das décadas de 1970 e 80, ao passo que Thomas Wayne (Brett Cullen), o empresário demagogo, alheio à realidade do povo, e que mesmo assim quer concorrer à prefeitura, pode ser visto como comentário a um certo magnata do ramo imobiliário que ingressou na política.
No fundo, o que Coringa faz é resgatar, com muita propriedade, um tipo de abordagem sobre o qual grandes cineastas da contracultura — incluindo, é claro, Scorsese — se debruçaram e que ultimamente andava relegado ao segmento independente: o estudo de personagem. Basta ver o quanto a narrativa é ditada pelo desenvolvimento do protagonista, desde o ritmo, extremamente cadenciado nos dois terços iniciais, até o fato de que os eventos em si importam menos do que o modo e o motivo pelos quais acontecem. A única diferença é que, neste caso, há no filme um garotinho milionário chamado Bruce.
Fonte: Jovem Nerd