Crise nas Infinitas Terras é a maior saga de todos os tempos da editora do Superman, Batman e Mulher-Maravilha. Mas o que levou à criação dessa história?
Imagine que sua casa esteja tão bagunçada que, para dar um jeito, a única saída seja demolir o local e construir uma residência nova. Apesar de a situação parecer um pouco absurda, ela serve de paralelo para o que estava acontecendo com a DC Comics na primeira metade dos anos 80 – e também há alguns anos antes disso. Este também é um bom resumo sobre a história da Crise nas Infinitas Terras, considerada não só a maior saga da casa da Liga da Justiça, mas uma das mais marcantes e influentes de todos os quadrinhos.
Mundos viveram, mundos morreram, ao longo de 12 revistas, publicadas nos EUA entre abril de 1985 e março de 1986, que mais tarde inspirariam um certo crossover de séries de TV…
Origem em outras Terras, e em outras editoras
Antes de tudo, a Crise nas Infinitas Terras foi criada com um principal objetivo: colocar ordem na casa. A DC Comics vinha acumulando muitos personagens, vindos de outras editoras – e já explicaremos isso mais adiante. Contudo, as histórias estavam confusas, mal-organizadas, desencontradas. Até que uma dupla criativa surgiu com uma ideia que revolucionaria os quadrinhos.
Mas, para entender como a Crise nasceu em 1985, é preciso antes viajar no tempo para 1961, na edição de número 123 da revista The Flash. Foi nela que Barry Allen e Jay Garrick, dois heróis que atendiam pelo nome de “Flash”, se encontraram pela primeira vez. Garrick era de um passado distante, a “Era de Ouro” dos gibis, enquanto Allen representava a “Era de Prata”, até então a mais atual. Contudo, a DC decidiu, a partir dali, que estaria definido que os dois viveriam em duas Terras distintas.
Barry Allen era o Flash da Terra-1, enquanto Jay Garrick (ou Joel Ciclone, como era conhecido no Brasil na época) seria o Flash da Terra-2. Este primeiro encontro oficial entre os dois foi também o primeiro momento em que a editora tratou da existência de “Infinitas Terras”. A partir daí, um ou outro crossover sempre rolava entre os dois ou mais universos que passaram a existir dentro da mesma casa.
Foi também na Era de Ouro que a DC Comics adquiriu editoras concorrentes e absorveu estes personagens, dando uma Terra nova para cada um habitar. Sabe o Shazam? Antigamente ele era o Capitão Marvel, morador da Terra-S, da antiga editora Fawcett Comics. A Terra-X era habitada por heróis da antiga Quality Comics, contendo o grupo Combatentes da Liberdade, liderados pelo Tio Sam, que lutava em uma realidade onde os nazistas haviam vencido a Segunda Guerra Mundial.
E aí voltamos ao início. Talvez para você, hoje, esses pequenos fatos históricos dos quadrinhos soem um pouco confusos. Imagine então para uma época onde não existia Internet e o acesso à informação era limitado a apenas publicações periódicas em papel e eventos fechados? “Crise” pode ser o nome do evento que é tema deste artigo, mas “confusão” é sua palavra-chave.
A verdadeira dupla dinâmica
Se a Crise nasceu e foi um sucesso, a DC deve muito a dois nomes, principalmente: o artista George Pérez e o escritor Marv Wolfman. A dupla nadava em uma piscina de vitórias desde 1982, quando relançou com enorme êxito Os Novos Titãs, série que revitalizou o até-então-não-tão-bem-sucedido grupo de heróis adolescentes para tempos mais modernos – e nos trouxe clássicos como Contrato de Judas, a criação do Asa Noturna, Quem é Donna Troy, entre outros.
Wolfman, aliás, vinha da concorrência. No final dos anos 70, o escritor chegou a ocupar o cargo de editor-chefe da Marvel Comics, durante um ano bem conturbado, com muitas trocas de cargos e rusgas internas que envolveram até Stan Lee. Ainda assim, obtendo mais sucesso que a DC no mercado editorial.
A Marvel passava por uma boa fase de vendas, ao contrário da Distinta Concorrência. Guerras Secretas pode não ser uma história com enredo memorável, mas serviu para incrementar o comércio de brinquedos. Chris Claremont ainda estava em voga com seus X-Men e Novos Mutantes. Homem-Aranha e Quarteto Fantástico eram títulos que vendiam bem e traziam histórias revigorantes.
Já dentro da DC, Wolfman teve uma ideia: em 1981, o roteirista anunciou que lançaria uma gigantesca saga chamada de “Crise nas Infinitas Terras”, que veria a luz do dia apenas em 1985. O tempo foi necessário para que o autor não cometesse erros, realizando uma extensa pesquisa sobre todos os Universos da editora até àquela época, pois o objetivo era promover a união entre eles, dando um desfecho para a bagunça que se tornara o Multiverso.
A ideia surgiu a partir de uma época em que Wolfman era o editor da revista do Lanterna Verde. No livro Pancadaria: Por dentro do épico conflito Marvel vs DC, o escritor Reed Tucker conta que recebeu uma carta de um leitor questionando o motivo pelo qual um personagem não havia reconhecido o Lanterna Verde, Hal Jordan, em determinada edição – sendo que já havia encontrado com ele, três anos antes.
Por isso, a premissa era básica e direta: acabar com a confusão que a DC havia criado entre seus leitores, após tantas editoras absorvidas e heróis espalhados por Terras distintas, com suas próprias regras, heróis e vilões.
E, assim, em abril de 1985, a Crise veio, pelas mãos de Wolfman e Pérez, com o apoio dos arte-finalistas Dick Giordano, Mike DeCarlo e Jerry Ordway. O time dos sonhos estava formado.
Dos Titãs à Crise
Wolfman começou a trabalhar na Crise pouco tempo depois de seu anúncio oficial. A partir de 1982, ele criou o Monitor, uma entidade que começou a aparecer de maneira misteriosa em várias revistas da DC, interagindo com heróis e vilões – principalmente vilões, como se estivesse incentivando batalhas, para testar o poder dos campeões de cada publicação.
Não por um acaso, o Monitor fez sua estreia em The New Teen Titans, na edição 21, sob comando de Wolfman e Pérez. A partir dali, tudo foi construído para levar à Crise e em como o Multiverso mudaria para sempre sob o comando dos dois, com a ajuda deste ser cósmico e poderoso, ao lado de sua fiel assistente, a Precursora Lyla Michaels.
Em Crise nas Infinitas Terras, somos apresentados, porém, ao Antimonitor. A versão maligna do Monitor, gerada a partir da Antimatéria, que tem como principal objetivo destruir todo o Multiverso, incluindo todas as Terras. Assim, Lyla reúne heróis de várias realidades para dar conta da situação e, de alguma forma, salvar o que (ou quem) puder.
Ao longo das 12 edições, muitas reviravoltas e revelações acontecem. Apesar de não querer dar muitos spoilers, é sempre bom lembrar que a Crise foi marcada pela morte de dois heróis icônicos: Barry Allen, o Flash, e Kara Zor-El, a Supergirl. Ambos fazem o grande sacrifício durante o combate, tornando-se uma espécie de “Tio Ben” da nova DC que nasceria após a Crise.
E foi o que aconteceu. Ao final da saga, Wolfman e a DC Comics definiram que agora só existiria uma Terra. Habitantes das outras realidades viveriam sob o mesmo teto de Batman, Superman, Mulher-Maravilha, que por sua vez ganhariam novas origens. Assim tivemos a criação de Batman Ano Um (com Frank Miller), Superman O Homem de Aço (de John Byrne) e a elogiadíssima fase da Mulher-Maravilha sob comando de George Pérez, que também escrevia.
A partir daí a confusão estava sanada e as coisas se tornaram mais simples. Tudo que aconteceu antes da Crise foi desconsiderado – ou quase isso – e os leitores teriam uma ótima oportunidade para começar do zero.
Mas isso foi há, praticamente, 34 anos…
A Crise não existe mais, longa vida à Crise
É possível afirmar que a Crise nas Infinitas Terras já foi desfeita, ainda que seu impacto seja sentido até hoje e fatos que ocorreram durante a saga ainda reverberem em publicações atuais da DC. Apesar de já ter tratado do Multiverso ao longo dos anos que se passaram, foi apenas em Convergência, saga de 2015, que a editora resolveu oficializar que as outras Terras retornariam à existência, desfazendo tudo que a Crise fez.
Mesmo assim, nenhuma outra saga mudou tanto os quadrinhos quanto a obra de Wolfman e Pérez. E nenhuma teve consequências tão duradouras. Quando foi publicada pela primeira vez, a Crise foi aquele tipo de história que causou um temor real nos leitores. Afinal, qualquer personagem poderia morrer de verdade, e foi o que aconteceu, mesmo entre heróis considerados “principais”.
Durante muitos anos, Wally West deixou de ser o Kid Flash para assumir o manto de Flash. Barry Allen retornou apenas 22 anos depois, na Crise Final, em 2008. A Supergirl original se manteve fora da existência até 2005, ainda que outras personagens tenham utilizado o nome, em anos que precederam seu retorno.
E, mesmo assim, a Crise é normalmente citada em qualquer grande evento da DC, como ocorreu durante Convergência, ou ao longo de fases recentes da editora, como Os Novos 52 e Renascimento.
Se por algum motivo você ainda duvidar do sucesso e importância desta saga, basta manter sua atenção voltada para o Arrowverse, o universo de séries de TV da DC, que está para criar sua versão da Crise para as telinhas. Ou quem sabe seja uma boa dica tentar pegar a versão em quadrinhos para ler e testemunhar, em primeira mão, a grandiosidade que foi a morte do Multiverso.
Fonte: Jovem Nerd