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O Rei Leão | Crítica

“Bambi na África misturado com Hamlet” — assim a corroteirista Irene Mecchi resume o enredo da primeira versão de O Rei Leão (1994). Já os produtores Don Hahn e Thomas Schumacher apontam influências da tradição judaico-cristã, especialmente as trajetórias de Josué e Moisés. De fato, é possível enxergar um pouco disso tudo no filme: uma história de formação, cujo catalisador é a morte de um ascendente direto (como em Bambi, de 1942); uma intriga na corte real, com um tio usurpador e um príncipe relutante, levado a agir após ter uma visão do espectro do pai (a exemplo da tragédia shakespeariana); um protagonista que é criado longe da família e, mais tarde, ressurge triunfante (de modo similar às passagens bíblicas).

Mais do que usar referências conhecidas, o primeiro longa-metragem animado da Disney com script original explora elementos narrativos comuns a contos de fadas, lendas e cosmogonias ao redor do mundo. Por exemplo, a trama pode ser decomposta da seguinte maneira: “um dos membros da família sai de casa”; “impõe-se ao herói uma proibição”; “a proibição é transgredida”; “o antagonista causa dano a um dos membros da família”; “o herói deixa a casa”; “o herói e seu antagonista se defrontam em combate direto”. Essas expressões entre aspas, que descrevem tão bem as desventuras de Simba, representam algumas das unidades básicas enumeradas pelo teórico russo Vladimir Propp ao analisar a produção folclórica de seu país natal, em Morfologia do Conto Maravilhoso — uma obra influente e pioneira no estudo da estrutura do mito, publicada duas décadas antes de Joseph Campbell conceber sua teoria da jornada do herói.

Cabe observar que a repetição de um mesmo esquema narrativo no folclore de diferentes culturas não pressupõe a existência de uma fórmula, mas sim de temas com identificação imediata e apelo universal. Ao abraçar tais temas, O Rei Leão consegue se conectar emocionalmente com os mais diversos perfis de público, o que parcialmente explica seu sucesso estrondoso — ele detém a maior bilheteria de todos os tempos para um longa em animação tradicional (US$ 968,5 milhões). A isso, somam-se o conjunto de personagens carismáticos (incluindo, é claro, os coadjuvantes) e a trilha sonora marcante, com, pelo menos, dois clássicos atemporais: Hakuna Matata e Can You Feel the Love Tonight, parcerias de Elton John e Tim Rice.

Não surpreende, portanto, que os realizadores do novo filme tenham optado por uma leitura fiel e reverente ao material original. Com pouco a melhorar (e, sejamos francos, ainda menos opções de mudanças que pudessem escapar ilesas à severa avaliação da legião de fãs), a versão que chega agora aos cinemas pode ser considerada, em grande medida, um remake quadro a quadro. O roteiro de Jeff Nathanson mantém o enredo praticamente intacto: o pequeno Simba (JD McCrary) sonha um dia ser um rei tão corajoso quanto o pai, Mufasa (James Earl Jones). No entanto, após uma conspiração orquestrada pelo tio, Scar (Chiwetel Ejiofor), o filhote acaba exilado e, além das Terras do Reino, fica amigo do suricato Timão (Billy Eichner) e do javali-africano Pumba (Seth Rogen), que o ajudam a sobreviver. Quando se torna um leão adulto (Donald Glover), ele se vê obrigado a confrontar o passado.

Uma alteração digna de nota é a breve backstory envolvendo Mufasa e Scar, que ressalta a rivalidade entre os irmãos, aumenta a importância da rainha Sarabi (Alfre Woodard) e rende uma das poucas cenas inéditas. De forma semelhante, o papel de Nala (Beyoncé) é ampliado por algumas linhas de diálogo e por uma sequência nova, que também serve para contextualizar melhor o reencontro dela com Simba. Curiosamente, é outra personagem feminina a única a ter uma mudança significativa de perfil: a hiena Shenzi (Florence Kasumba) deixa de apresentar qualquer traço de humor (na versão original, Whoopi Goldberg dava voz a ela) a fim de se tornar mais ameaçadora. Assim, o lado cômico de sua alcateia passa a ser exclusividade dos companheiros Kamari (Keegan-Michael Key) e Azizi (Eric André).

Outra mudança, esta óbvia, diz respeito ao visual. Embora Jon Favreau se preocupe em reproduzir imagens icônicas do longa original, o diretor também tira máximo proveito da tecnologia VR — que já havia empregado em Mogli, o Menino Lobo (2016) — para imprimir sua própria visão e recriar a savana africana com imensa fidelidade em tomadas deslumbrantes. Inclusive, há trechos em que o cineasta adota uma estética inspirada nos documentários sobre natureza e vida selvagem, em especial, na extensa cadeia de eventos que leva o babuíno Rafiki (John Kani) a descobrir que o herdeiro de Mufasa está vivo.

Com a mesma abordagem, Favreau retrata uma gama de bichos muito maior que a do filme de 1994 — há até um aardvark (ou porco-formigueiro) na divertida sequência em que Timão e Pumba cantam The Lion Sleeps Tonight. O ponto negativo dessa escolha pelo fotorrealismo é que, em nome da correção anatômica, os animais acabam perdendo muito em termos de expressividade, ainda mais quando comparados a suas contrapartes em animação convencional ou mesmo a outras criaturas em CGI. A fragilidade nesse aspecto, todavia, é compensada pela grande virtude do longa: o elenco.

Se por um lado é difícil imaginar a realeza, a autoridade e amor paterno de Mufasa com uma voz que não a de James Earl Jones, por outro, os demais personagens crescem graças a seus novos intérpretes. Donald Glover empresta ao Simba adulto uma indolência ausente na versão original, enquanto Chiwetel Ejiofor substitui o ar folhetinesco (adequado naquele cenário) por um tom mais natural e intimidador. John Oliver traz bem-vindos rompantes histéricos para o calau-de-bico-vermelho Zazu, ao passo que Billy Eichner e Seth Rogen se apropriam do suricato e do javali-africano e atualizam seu senso de humor, introduzindo inclusive algumas piadas metalinguísticas, com referências ao próprio filme, à animação e à trilha sonora de A Bela e a Fera.

Mesmo Beyoncé, que não é notável em termos de atuação, mostra-se competente. Como seria de se esperar, o que ela esbanja mesmo é talento vocal, provocando arrepios em Can You Feel the Love Tonight e na inédita Spirit. Por sinal, outros membros do elenco se saem bem na cantoria, com destaque para Glover, dono de uma carreira musical interessante à frente do projeto Childish Gambino, e Ejiofor, que surpreende em uma impressionante interpretação de Be Prepared.

Alguns dirão que a releitura é excessivamente segura: livre de riscos e polêmicas e, ao mesmo tempo, livre de ousadia. Mas todas as qualidades da animação original estão presentes, prontas para conquistar uma geração de novos admiradores. E há novidades suficientes para prender a atenção dos velhos fãs. Talvez seja questão de estado de espírito: é preciso entrar no cinema disposto a se divertir e se deixar encantar, sem racionalizações ou preocupações. Hakuna matata.


Fonte: Jovem Nerd